O Sistema Solar terminou a semana muito mais interessante do que começou. E, graças a estudos envolvendo uma lua de Júpiter e uma de Saturno, as chances de encontrarmos vida extraterrestre aqui no nosso quintal aumentaram significativamente nos últimos dias.
Na quarta-feira, um artigo científico publicado na revista “Nature” revelou que Encélado, uma pequenina lua de Saturno, tem fontes hidrotermais no leito do oceano de água que existe sob a superfície congelada.
Como se não bastasse isso, ontem, uma entrevista coletiva organizada pela Nasa apresentou novos resultados do Telescópio Espacial Hubble, confirmando que Ganimedes, a maior das luas de Júpiter, tem um oceano de água salgada sob sua superfície.
O que essas descobertas significam? Em essência, que há não um, nem dois, mas uma porção de possíveis habitats “molhados” para vida no Sistema Solar. E isso levando em conta o “preconceito” básico dos cientistas de que a água em estado líquido é o componente mais essencial para a vida.
Bem, tem uma razão de ser. Sabemos que a vida terrestre é baseada em compostos complexos de carbono (a famosa química orgânica) que reagem usando como solvente a água (boa e velha H2O). Por que não pensar em alternativas? Por exemplo, vida baseada em silício, que usa amônia ou metano líquido como solvente?
Você pode até fazer essas especulações — alguns cientistas de fato as fazem. Mas não é tão fácil quanto parece. Por quê? Seguindo nosso exemplo hipotético, por mais versátil que seja o silício, ele não é tão bom em produzir variedades moleculares como o carbono — e variação é fundamental num fenômeno tão complexo quanto a vida. O carbono é imbatível nesse quesito, comparado a todos os outros elementos da tabela periódica.
Da mesma forma, também não há molécula mais eficaz para diluir soluções que a água. E, de quebra, estamos falando de três dos elementos mais abundantes do Universo — hidrogênio, oxigênio e carbono. Ou seja, é uma boa aposta, ao menos para começo de conversa, se concentrar em “vida como a conhecemos”.
Agora que tiramos isso da frente, vamos ver o que Encélado e Ganimedes têm de sensacional. A começar pelo mais próximo de nós.
COMO NÃO AMAR AS LUAS DE JÚPITER?
Ele é o maior planeta do Sistema Solar e, com esse tamanho todo, é quase natural aceitar que há mais de 60 luas girando em torno de Júpiter. Mas quatro delas são especiais: Io, Europa, Ganimedes e Calisto.
São as quatro maiores e foram todas descobertas entre 1609 e 1610, quando Galileu Galilei ousou apontar sua luneta para o céu. Para ele, eram apenas pontinhos de luz orbitando o planeta — o que por si só já era grande coisa, numa época em que a sabedoria convencional ditava que tudo girava em torno da Terra.
Hoje, contudo, depois da visitação de diversas espaçonaves, essas luas deixaram de ser pontos e viraram quatro mundos inteiros. Depois disso, descrevê-los meramente como fascinantes não lhes faz justiça.
Io orbita mais perto de Júpiter e sofre os maiores efeitos de maré por conta da proximidade com o gigante gasoso. O resultado disso é o mundo geologicamente mais ativo do Sistema Solar, com vulcões em erupção o tempo todo, despejando toneladas de lava no espaço a cada segundo.
Esse material rico em enxofre — um elemento que produz efeitos desagradáveis na química do pum, mas essencial à famosa “vida como a conhecemos” — se desprende de Io e chega a cobrir a superfície de Europa, a segunda das luas galileanas. Já sabemos há algum tempo, com base em informações da sonda americana Galileo, que há um oceano global sob sua crosta congelada, e o leito do oceano pode estar geologicamente ativo, produzindo habitats similares aos encontrados nas profundezas dos mares terrestres.
Uma descoberta surpreendente feita em 2013 é a de que plumas de vapor d’água emanam de fissuras na superfície de Europa — fornecendo um caminho para que o que há no oceano vaze para o espaço. Esse material também consegue escapar completamente da suave gravidade europana e não tenha dúvida de que parte dessas moléculas — e o que quer que viaje nelas — acaba chegando à nossa próxima parada: Ganimedes.
Com 5.268 km de diâmetro, é a maior lua do Sistema Solar e a única a exibir um campo magnético apreciável. Se orbitasse o Sol, provavelmente seria considerada um planeta — Mercúrio e Plutão são menores que ela.
Mais afastada de Júpiter que Io e Europa, Ganimedes sofre menos com o efeito de maré, o que colocava algumas dúvidas sobre a existência de um oceano sob a crosta. Haveria energia gravitacional suficiente para chacoalhar o interior da lua e deixar a água em estado líquido?
Medições do campo magnético da lua feitas pela sonda Galileo pareciam sugerir que sim. Mas uma resposta ainda mais contundente apareceu agora, com o Telescópio Espacial Hubble. Analisando o padrão de auroras observadas em Ganimedes (ela não tem uma atmosfera propriamente dita, como a da Terra, mas um tênue invólucro gasoso que, interagindo com o campo magnético, pode produzir auroras), os pesquisadores liderados por Joachim Saur, da Universidade de Colônia, na Alemanha, concluíram que deve haver um oceano de água salgada sob a crosta de gelo.
E não é qualquer oceano. Os pesquisadores estimam que ele tenha 100 km de profundidade — dez vezes mais que os pontos mais fundos dos oceanos terrestres — e esteja escondido sob uma crosta de 150 km de gelo.
Agora, pare para pensar um pouquinho: Io manda enxofre para Europa, que manda conteúdo do seu oceano para Ganimedes, que tem seu próprio oceano sob 150 km de gelo. Não é preciso muita imaginação para pensar que essas três luas — e talvez Calisto, a quarta lua galileana, que também pode ter um oceano no subsolo — componham juntas um único ecossistema. Io fornece nutrientes, Europa gera vida e acaba semeando-a em Ganimedes e Calisto. Por que não?
Você pode se perguntar também: por que Ganimedes não pode gerar suas próprias formas de vida? Talvez possa. Afinal, não sabemos exatamente o que é preciso — salvo água líquida e compostos de carbono — para que a biologia consiga surgir. Mas algo que joga contra Ganimedes é o fato de que, sob o oceano, provavelmente há outra camada de gelo. Falta o leito rochoso que, ao menos na Terra, parece ter tido um papel na origem da vida (e que pode muito bem existir sob o oceano de Europa).
O que nos leva a Saturno e sua pequenina lua, Encélado.
O FABRICANTE DE ANÉIS
Saturno é menor que Júpiter, mas esteticamente é ainda mais marcante, com seus característicos anéis feitos basicamente de partículas de gelo.
Encélado tinha tudo para ser trivial. Com um diâmetro de meros 500 km, poderia se passar por mais uma bolota de gelo, como tantas que há em volta do planeta. Mas desde a passagem das sondas Voyager por Saturno, na década de 80, já se sabia que havia algo de estranho lá. A superfície parecia muito jovem para um mundo congelado, e algumas faixas estranhas se sobressaíam na paisagem. O mistério foi desfeito pela sonda Cassini, em 2005. As faixas eram fissuras na região do polo Sul por onde plumas de vapor d’água ganhavam o espaço. Aparentemente, o efeito de maré gerado por Saturno era suficiente para liquefazer ao menos parte do interior da lua, gerando um oceano no subsolo.
Essas emissões acabavam se condensando no espaço e produzindo partículas que alimentavam um dos anéis de Saturno com novo material. O oceano de Encélado estava mantendo uma das joias da coroa saturnina, o anel E. E é aí que entram os novos resultados, publicados na “Nature”. Ao analisarem a composição das partículas do anel, Sean Hsu, da Universidade do Colorado em Boulder, e seus colegas identificaram minúsculas partículas de silicatos no anel — para os íntimos, rocha — que só podem ter vindo do interior de Encélado, como o gelo.
E o mais interessante: os cientistas acreditam que o padrão observado de grãos de silicatos parece sugerir que o material foi ejetado do oceano a partir de uma fonte hidrotermal, onde a água teria sido aquecida a pelo menos 90 graus Celsius.
Na Terra, essas fontes produzem fumarolas e estão fervilhando com vida. Muitos pesquisadores consideram inclusive que esse tenha sido um ambiente ideal para o surgimento das primeiras criaturas vivas em nosso planeta, quase 4 bilhões de anos atrás.
Outra evidência de que essas fumarolas existem foi apresentada num segundo artigo científico, publicado na “Geophysical Research Letters”, que sugere atividade hidrotermal como uma possível fonte para o gás metano detectado nas plumas de Encélado. Ele não teria origem biológica, mas seria gerado por reações minerais nas próprias fontes.
Agora, veja só: um possível berço para a vida, num ambiente cheio de química orgânica e água líquida, bastante similar ao leito oceânico terrestre. É ou não é interessante?
ÁGUA PARA TODO LADO
A essa altura, está claro que ambientes ricos em água líquida não são raros, mesmo em nosso Sistema Solar. E esses locais parecem ter todas as condições para a presença de vida.
É bem verdade que a Terra ainda oferece vantagens adicionais, de modo que a maioria dos cientistas não espera encontrar mais que simples micróbios — se tanto — nesses ambientes extremos. Contudo, cabe também lembrar duas coisas.
A primeira é que, durante três quartos de sua história, a Terra também foi um planeta essencialmente microbiano. O advento da vida complexa, multicelular, é relativamente recente, com menos de 1 bilhão de anos (pode parecer muito, mas não tanto, se comparado aos 4,6 bilhões de anos do Sistema Solar).
A segunda é que, apesar de tudo que já aprendemos, ainda sabemos muito pouco sobre a origem da vida e seus possíveis desdobramentos para descartar surpresas nesses ambientes estranhos, tão diferentes da Terra — e ao mesmo tempo tão familiares. Que inovações maravilhosas e complexas a evolução pode ter produzido sob essas espessas capas de gelo nos últimos 4 bilhões de anos? Só saberemos indo até lá. A aventura está apenas começando.
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