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terça-feira, 17 de março de 2015

O catálogo da vida extraterrestre

Um catálogo produzido por um grupo de pesquisadores da Nasa — dentre eles um biólogo brasileiro — é a mais nova ferramenta dos astrônomos para, em alguns anos, tentar identificar a existência de vida em planetas localizados fora do Sistema Solar.
Planetas similares à Terra podem revelar a presença de vida na luz que emana de sua superfície. (Crédito: ESO)
Planetas similares à Terra podem revelar a presença de vida na luz que emana de sua superfície. (Crédito: ESO)

A partir de 2018, com o lançamento do Telescópio Espacial James Webb, o sucessor do Hubble, os cientistas terão à disposição os meios para estudar a assinatura de luz de planetas similares à Terra fora do Sistema Solar.
Esses traços de luz — os espectros — podem carregar consigo sinais da presença de vida. Mas que tipo de vida? É onde entra o novo catálogo, produzido pela equipe de Lynn Rothschild, do Centro Ames de Pesquisa, da Nasa.
Em essência, os pesquisadores analisaram 137 micro-organismos terrestres de diferentes tipos, reunindo desde criaturas comuns até aquelas mais exóticas, que só vivem em ambientes extremos. Para cada um deles, a equipe extraiu uma assinatura espectral — ou seja, o sinal luminoso que poderia ser detectado ao telescópio se um planeta fosse habitado por formas de vida daquele determinado tipo.
A ideia é que, conforme comecemos a estudar esses mundos distantes, tenhamos uma base de comparação para tentar identificar que tipo de vida eles podem estar abrigando.
Dos 137 organismos estudados, 107 foram isolados pelo biólogo brasileiro Ivan Gláucio Paulino Lima, 35, que está fazendo seu pós-doutorado na Nasa.

A TERRA DE LONGE
Se astrônomos alienígenas observassem nosso planeta de uma distância de alguns anos-luz, com tecnologias não muito superiores às nossas, eles poderiam detectar na assinatura de luz os sinais esverdeados das plantas que cobrem boa parte da superfície terrestre.

Contudo, os pesquisadores da Nasa ressaltam, em seu artigo publicado ontem na “PNAS”, revista da Academia Nacional de Ciências dos EUA, que esses sinais vegetais são uma inovação relativamente recente na história da Terra — eles só se tornaram dominantes há 460 milhões de anos. Mas nosso planeta tem uma idade dez vezes maior — 4,6 bilhões de anos, dos quais pelo menos 3,5 bilhões foram marcados pela presença de vida, ainda que ela fosse microscópica na maior parte dese tempo.
Ou seja, se os astrônomos alienígenas estivessem estudando o espectro luminoso da Terra há meio bilhão de anos, não haveria sinal inequívoco de plantas. Mas ainda assim eles poderiam encontrar traços de vida — contanto que procurassem outros padrões, ligados a criaturas unicelulares.

Amostras de oito micróbios terrestres, cada um capaz de produzir uma assinatura espectral diferente (Crédito: Hegde et al. / MPIA)
Amostras de oito micróbios terrestres, cada um capaz de produzir uma assinatura espectral diferente (Crédito: Hegde et al. / MPIA)

É mais ou menos esse buraco que os pesquisadores da Nasa estão tentando cobrir. Começando com esses 137 micro-organismos, cada um com sua assinatura própria de luz, o catálogo permitirá não só facilitar a detecção de vida, como identificar que tipo de forma de vida pode ser dominante por lá.
VIDA COMO A CONHECEMOS
Claro, essa detecção só é possível se as assinaturas espectrais alienígenas se pareçam com as produzidas pela biodiversidade terrestre. Não é otimismo demais achar que a biologia extraterrestre terá ao menos cores similares às vistas nos micro-organismos terrestres? Segundo Ivan Gláucio Paulino Lima, não.

“Se pensarmos na faixa de energia eletromagnética que moléculas orgânicas consigam absorver e aproveitar, não podemos ir muito além do vísivel. O ultravioleta é muito energético e acaba danificando as moléculas orgânicas. O infravermelho possui baixa energia, nao é suficiente para ser biologicamente útil”, disse o pesquisador brasileiro ao Mensageiro Sideral. “Portanto, se pensarmos em formas de vida baseada em carbono, com água como solvente etc. (vida tal como a conhecemos), não é otimismo, pois não podemos fugir muito disso. E além do mais é tudo que conhecemos com certeza.”
O catálogo em si é de acesso livre, e os pesquisadores os estão tratando apenas como um ponto de partida. “O banco de dados ficará aberto para novas contribuições. Demos muita atenção ao detalhamento experimental para que os experimentos possam ser reproduzidos facilmente”, diz Paulino Lima.
De todo modo, uma coisa é certa: a busca por vida alienígena está esquentando para valer. 

Confira abaixo a conversa fascinante que o  Mensageiro Sideral teve com o astrobiólogo brasileiro na Nasa.
Ivan Gláucio Paulino Lima, biólogo brasileiro no Centro Ames de Pesquisa, da Nasa. (Crédito: arquivo pessoal)
Ivan Gláucio Paulino Lima, biólogo brasileiro no Centro Ames de Pesquisa, da Nasa. (Crédito: Arquivo pessoal)
Mensageiro Sideral – A primeira coisa que me ocorreu é que o trabalho de vocês parece muito mais um princípio do que um fim. A ideia é ir construindo aos poucos esse catálogo?
Ivan Gláucio Paulino Lima - Isso mesmo. O banco de dados ficará aberto para novas contribuições. Demos muita atenção ao detalhamento experimental para que os experimentos possam ser reproduzidos facilmente.
Mensageiro Sideral – Como é, para um biólogo, pela primeira vez começar a vislumbrar a descoberta de outro mundo com vida no Universo? Ainda que esteja a pelo menos mais alguns anos de distância, já está dando pra ver a luz no fim do túnel…
Paulino Lima - Desde a faculdade eu sempre partilhei da idéia de que existe uma grande possibilidade de que a nossa geração testemunhe talvez a maior descoberta de todos os tempos — a descoberta de vida em um outro mundo. Como você disse, esse artigo é apenas uma luz no fim do túnel, um passo pequeno, acredito que na direção certa. É muito gratificante para um biológo poder ter essa oportunidade.
Aliás esse trabalho exigiu uma colaboração muito produtiva entre astrônomos e biólogos. E é isso que eu acho fantástico sobre a astrobiologia. Esse esforço interdisciplinar possibilita investigar questões muito complexas, como essa das bioassinaturas em exoplanetas.
Tudo que os astrônomos terão disponível em termos de dados provenientes dos novos telescópios espaciais, a serem lançados nos próximos anos, é um conjunto de espectros de luz. Os astrônomos vão precisar comparar isso com o que se conhece aqui da Terra. E até agora não existia um catálogo de espectros de organismos com diferentes cores. Nós começamos esse catálogo e ele servirá como o principal referencial para os astrônomos.
Mensageiro Sideral – Mas não é muito otimismo achar que referências terrestres ajudarão a encontrar vida extraterrestre?
Paulino Lima - Se pensarmos na faixa de energia eletromagnética necessária que moléculas orgânicas consigam absorver e aproveitar, não podemos ir muito além do vísivel. O ultravioleta é muito energético e acaba danificando as moléculas orgânicas. O infravermelho possui baixa energia, nao é suficiente para ser biologicamente útil. Portanto, se pensarmos em formas de vida baseada em carbono, com água como solvente etc. (vida tal como a conhecemos), não é otimismo, pois não podemos fugir muito disso. E além do mais é tudo que conhecemos com certeza.
Mensageiro Sideral – Ou seja, a vida na Terra parece seguir uma receita que não deve sofrer muitas variações lá fora — pelo menos até onde conseguimos imaginar.
Paulino Lima - Isso mesmo. A vida tal como a conhecemos deve ser predominante no Universo. Mas isso não elimina a possibilidade de bioquímicas alternativas em alguns lugares menos representados.
Mensageiro Sideral – Titã [lua de Saturno], por exemplo?
Paulino Lima - Isso, e Europa [lua de Júpiter], Encélado [lua de Saturno] e agora Ganimedes [lua de Júpiter]. Na verdade esses três últimos seriam mais parecidos com a vida terrestre do que Titã.
Mensageiro Sideral – E onde você acha que a busca por vida alienígena está mais quente, nos exoplanetas ou no nosso Sistema Solar?
Paulino Lima - Até pouco tempo eu diria que a detecção remota de vida em exoplanetas estava mais quente. Mas agora com as missões destinadas a Europa e novas propostas para investigar Encélado eu acho que é um páreo duro.
A detecção de bioassinaturas em exoplanetas pode acontecer a partir do momento em que conseguirmos caracterizar de maneira suficiente a atmosfera dos exoplanetas. Será uma detecção indireta, não saberemos nada mais do que a confirmação da presença de vida alienígena. Claro, uma quebra de paradigma violenta!
Mas nada como ir lá, fotografar, medir e quiçá coletar uma amostra no nosso jardim estelar!
Mensageiro Sideral – O que nos traz de volta ao catálogo de vocês. As primeiras medições com o Telescópio Espacial James Webb, com lançamento marcado para 2018, e com os grandes telescópios em terra devem ser atmosféricas, mas vocês estão criando perfis espectrais de superfície. Teremos de esperar muito mais para colocar o catálogo pra trabalhar?
Paulino Lima - Não necessariamente. Se a atmosfera do exoplaneta for transparente no visível-infravermelho próximo (até 2,5 micrômetros), então o que sobra é o espectro da superfície. Tudo vai depender dos dados que serão coletados e da modelagem atmosférica.
Mas mesmo se a atmosfera não for transparente, podemos imaginar nuvens carregadas de micro-organismos que poderiam alterar o espectro do planeta. Algo parecido com o que foi proposto por Carl Sagan na atmosfera de Vênus.
Mensageiro Sideral – Mas o James Webb não vai depender de espectro de transmissão, ou seja, da luz que vem da estrela e atravessa a atmosfera do planeta, chegando até nós? Aí não vai ter espectro da superfície, certo?
Paulino Lima - Eu acho que os espectros de transmissão serão mesmo prioridade do James Webb. Mas imagine um planeta passando quase atrás de sua estrela. Se você tirar um espectro nesse momento e subtrair o espectro de transmissão, você pode calcular o espectro de reflexão. Claro que isso depende de muita modelagem atmosférica e não é muito bem a minha área, mas de qualquer maneira esse é o princípio fundamental.
Mensageiro Sideral – Então você acha que vai dar para confrontar espectros reais de exoplanetas com o catálogo já no começo da próxima década, quando tivermos o James Webb e os grandes telescópios?
Paulino Lima - Com certeza! Os observatórios terrestres já podem começar a usar!
Mensageiro Sideral – Você sente um frenesi aí no Centro Ames de Pesquisa, que é o que tem a maior vocação de astrobiologia dentro da Nasa?
Paulino Lima - Sim, muitas vezes, principalmente durante o verão com o Director’s Coloquium, uma série de palestras de cientistas e personalidades do mundo científico e tecnológico. Já assisti a palestras com a Jill Tarter, Frank Drake, Craig Venter, diversos astronautas etc.
Mensageiro Sideral – E como você foi parar aí. Conte um pouco da sua carreira?
Paulino Lima - Eu sempre gostei muito de biologia e física. Acabei escolhendo biologia por causa da genética. Mas eu sempre fui interessado em física. Na graduação em ciências biológicas na Universidade Estadual de Londrina(UEL) eu participei do Grupo de Estudo e Divulgação de Astronomia de Londrina e isso foi o que manteve a minha motivação de seguir uma carreira na área da astrobiologia.
Eu fiz o meu mestrado em Genética e Biologia Molecular na UEL trabalhando com técnicas de transformação genética de fungos entomopatogênicos (controladores de pragas da agricultura).
Mas para o doutorado eu queria algo essencialmente em astrobiologia. Fui para o Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBCCF/UFRJ) e desenvolvi a primeira tese experimental em astrobiologia do Brasil. Passei um ano na Open University (Reino Unido) e nesse período eu realizei experimentos na Itália, na Irlanda do Norte e em Oxford, simulando os efeitos das radiações espaciais em Deinococcus radiodurans [micróbio extremófilo muito resistente à radiação].
Minha tese foi bem focada na hipótese da panspermia, mais especificamente no período de exposição ao espaço interplanetário.
Alguns meses antes da minha defesa, eu fiquei sabendo que a minha atual supervisora aqui na Nasa, a dra. Lynn Rothschild, iria ao Brasil dar um minicurso numa escola avançada da USP em Campos do Jordão. Eu convidei a Lynn para a minha defesa e ela aceitou. Marquei a defesa para a semana anterior ao evento e o IBCCF/UFRJ só teve de arcar com as despesas de traslado Sao Paulo-Rio. Deu tudo muito certo, apresentei meu projeto de pós-doutorado para ela, ela gostou, consegui uma bolsa da Nasa e vim para os EUA!
Eu também consegui uma posição de professor temporário de bioquímica na UEL enquanto nao saía a resposta da bolsa da Nasa.
Mensageiro Sideral – Como surgiu a ideia que resultou no artigo publicado na “PNAS”?
Paulino Lima - O legal é que eu conheci o Siddharth Hedge e a Lisa Kaltenegger [dois dos co-autores] na São Paulo Advanced School in Astrobiology, um evento que ajudei a organizar em 2011 em São Paulo. A ideia tomou força quando eu mostrei meu banco de micro-organismos para a Lisa e comentei sobre a viabilidade dos experimentos. No ano seguinte, o aluno dela, Siddarth, veio e depois de muitos brainstorms sobre a melhor maneira de fazer os experimentos, nós estabelecemos uma colaboração com pesquisadores da Universidade da Califórnia em Davis e passamos uma semana coletando dados lá.
Dos 137 organismos testados, eu isolei 107 durante a minha pesquisa de pós-doutorado aqui na Nasa. Acho que a Lisa e o Sid já tinham o catálogo em mente. E a coisa cristalizou quando ela viu meus bichos coloridos e constatou que a ideia de um catálogo seria perfeitamente factível a curto prazo. E aqui estamos hoje, com o catálogo publicado. Eu fiz o trabalho duro de coletar as amostras ambientais e isolar e caracterizar os micro-organismos e contribuí na hora do preparo das amostras para os experimentos.
Tanto a Lisa quando o Sid são excelentes físicos teóricos, e eu e meus colegas co-autores do artigo Ryan Kent e Lynn Rothschild somos biólogos fundamentalmente experimentalistas. A combinação não poderia ser melhor e o resultado é muito gratificante!

POR SALVADOR NOGUEIRA